Trump/Zelensky: o "dealer" da Casa Branca e o comediante de Kiev
Sequência histórica entre o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky e Donald Trump na Casa Branca. O mundo assistiu a um debate sem filtro entre dois líderes desesperados.
Um dia histórico para a diplomacia americana. O trágico momento em que o mundo testemunhou o fim da OTAN. São apenas algumas maneiras de expressar o que sentimos assistindo a briga entre Donald Trump, J.D. Vance e Volodymyr Zelensky na Casa Branca. É verdade que aqui mesmo, falei que os ataques de Trump contra o Zelensky nas redes sociais eram praticamente sinais de que a OTAN tinha chegado ao seu fim. Portanto, não vou fingir supresa agora. Também apontei que o verdadeiro perdedor desse momento histórico era a Europa, que se não entendeu ainda, vai sofrer duramente as consequências da guinada de Donald Trump em relação a seus aliados no “velho continente”.
Mas quero voltar precisamente a essa sequência de quatro a seis minutos em que Zelensky e Trump engajam uma briga ao vivo, bem em frente à câmeras, sobre os acordos de cessar-fogo entre Rússia e Ucrânia. O vice-presidente americano, J.D. Vance, é claro, estava presente e foi o detonador da “bomba” que explodiu na cara do mundo.
Para quem não assistiu ao vídeo, boa parte da sequência já foi legendada e está disponível nas diferentes plataformas da internet. Quero ir ponto a ponto.
1. J.D. Vance, um tuitteiro no Salão Oval
Vance: Você deveria estar agradecendo ao presidente por tentar acabar com esse conflito.
Zelensky: você já foi à Ucrância para dizer quais problemas temos?
Vance: Eu realmente assisti e vi as histórias e eu sei o que acontece é que você traz as pessoas e os leva a uma turnê de propaganda, senhor presidente.
Esse é o momento exato em que se iniciou uma briga inédita na Casa Branca entre um chefe de Estado europeu e um presidente americano (e seu vice-presidente). É interessante notar que J.D Vance agiu exatamente como um tuitteiro briguento que acha que sabe mais que todos, não importa o assunto. O problema aqui é que falamos de uma guerra e Vance, que nunca pisou na Ucrância, demonstrou uma tremenda falta de empatia com o sofrimento alheio, reduzindo a guerra na Ucrânia a uma simples questão de propaganda.
Obviamente que na guerra, a propaganda é necessária. Mas aqui, Vance contrapõe o sofrimento de um povo vítima da guerra a um reducionismo vergonhoso. Alguém imagina um vice-presidente americano, ao se referir ao conflito no Oriente Médio, dizer que Israel e Netanyahu organizam “turnês de propaganda”?
Para mim, ficou claro que J.D. Vance estava lá para falar com seu público e não precisamente com Zelensky. Vance ainda está em campanha eleitoral contra o Biden. Não a toa criticou Zelensky por apoiar a candidatura de Kamala Harris nas útlimas eleições americanas. J.D. Vance não é um vice-presidente. É um tuiteiro vingativo.
2. Trump quebra a “quarta parede”
Zelensky: Durante a guerra, todo mundo tem problemas. Até você. Mas você tem um bom oceano e não sente agora. Mas você sentirá isso no futuro.
Trump: Você não sabe disso. Não nos diga o que vamos sentir. Estamos tentando resolver o problema. Não nos diga o que vamos sentir. Porque você não está em posição de ditar isso.
Zelensky: vocês vão sentir a influência.
Trump: Nós vamos nos sentir muito bem e muito forte. Você agora não está numa boa posição. Você se permitiu estar em uma posição muito ruim…
Aqui foi realmente o momento em que Trump quebrou a “quarta parede” e deixou o mundo em estado de choque. Sabe aquela coisa que você sabe que existe mas que você não quer ver? É aquela realidade que todos sabem que existe mas que fica no imaginário, na esfera do mítico. Todos sabemos que os Estados Unidos são os país mais poderoso do mundo, mas nunca precisaram humilhar seus interlocutores em frente às câmeras para demonstrar esse poder. Donald Trump se descontrolou e esqueceu seu papel. Agiu como um gangster tentando intimidar uma pessoa claramente inferior a ela.
Nós fomos convidados a ver o horror. Zelensky foi levado ao matadouro e nos obrigaram a assistir sua execução. Não pagamos para isso.
3. O dia em que Putin ganhou a guerra
Trump: você não tem as cartas agora. Conosco você tem as cartas.
Zelensky: Não estou jogando cartas.
Trump: Você está jogando cartas. Você está jogando com a vida de milhões de pessoas. Você está jogando com a Terceira Guerra Mundial.
Não se enganem. Não foi nesse “momento Trump/Zelensky” na Casa Branca que Vladimir Putin ganhou a guerra. Na realidade, se analisarmos de fato o que está acontecendo numa perspectiva mais ampla; foi em setembro de 2024 que Putin ganhou definitivamente essa guerra. Precisamente no dia 25 de setembro quando o presidente russo anunciou que mudava a doutrina nuclear do país.
Na ocasião, Putin avisou ao Ocidente que consideraria uma agressão direta contra seu país o uso pela ucrânia de misséis fornecidos pelas potências [nucleares] ocidentais; o que levaria eventualmente a uma resposta nuclear.
Nesse momento, Trump foi realmente sincero. O medo que ele tem de uma Terceira Guerra Mundial não é uma piada. E se ele foi levado a considerar essa hipótese, é porque em algum momento nessa guerra, Putin decidiu mudar sua abordagem com o Ocidente. Como eu falei, a sequência de quatro a seis minutos tem muito a nos dizer, mas talvez essa menção à Terceira Guerra Mundial seja a parte mais interessante. A grande revelação. Sem estar presente na Casa Branca, Putin foi o grande vencedor de tudo isso.
4. Estamos falando de negócios?
Zelensky: Desde o início da guerra estivemos sozinhos e somos gratos. Eu disse obrigado neste gabinete.
Trump: Vocês não estavam sozinhos. Nós demos a você, por aquele presidente estúpido, 350 bilhões de dólares. Nós demos a você equipamento militar. Você é corajoso mas usou nosso equipamento militar. Se você não tivesse nosso equipamento militar, essa guerra teria acabado em duas semanas.
Zelensky: Em três dias. Eu ouvi de Putin. Em três dias.
Trump: Talvez menos!
Zelensky: Claro que sim.
Trump: Vai ser muito difícil de fazer negócios assim.
Well, Well, Well… amigos. O que dizer? Que sequência! Que loucura! Esse não seria o momento mais fora da caixinha desse encontro? Vejam bem o que aconteceu aqui. Trump literalmente deu razão ao Putin que alterou a doutrina nuclear da Rússia ao considerar que seu país não estava em guerra com a Ucrânia, mas com o Ocidente. Tudo bem que não era um segredo, mas Trump simplesmente jogou na cara de Zelensky que ele é um “proxy” nessa história (se é que tinha esquecido). E nisso, ele dá razão ao Putin.
É muito curioso também a maneira como Trump continua se referindo ao Joe Biden (ele foi menos agressivo com Obama, embora tenha deixado algumas “balas perdidas” para ele também). Chamou Biden de estúpido. Realmente, é curioso. Esse é um dos motivos que me levam a acreditar que não necessariamente a política atual de Donald Trump reflete às tendências dominantes do Pentágono. Lembrem-se, a visão imperialista dos Estados Unidos não se decide pela administração da vez, nem pelo Secretário de Estado da vez. É uma doutrina construída no Pentágono e que se mantém independentemente dos governos. O Pentágono, enquanto símbolo das forças armadas americanas e de sua indústria militar, possui certa autonomia e até mesmo uma agenda que vai além da administração no poder. Não é razoável pensar que durante todos esses anos, os Estados Unidos investiram tantos recursos e tanto dinheiro para nada; que a guerra na Ucrânia foi feita sem motivo. Que não foi pensada.
As ações de Trump, de meu ponto de vista, indicam um certo desespero dos Estados Unidos, sobretudo, diante da ascensão chinesa. Esse é um tema que merece ser desenvolvido em outro texto. Mas continuemos. Assistindo essa sequência entre Zelensky, Vance e Trump, fica muito claro que temos aí um “fantoche” descontrolado (esse é o Zelensky) porque está com muito medo. Zelensky teme pela própria vida e teme pelo seu futuro. É um fraco. Mas é um fraco que já perdeu muito e não tem mais nada a perder. E esse tipo de gente fraca é muito perigosa. Como entender a atitude dele no Salão Oval se não for dessa maneira? Zelensky estava visivelmente desesperado e perdeu o controle. Os Estados Unidos, especialmente o governo Trump, o levou ao limite psicológico. Mas pode ser que o desespero de Zelensky seja também o desespero do povo ucraniano. Ou talvez seja até menor. Quem sabe o que os ucranianos estão pensando agora? Especialmente desde que Trump começou a manifestar sua hostilidade contra Zelensky em público.
Fica muito claro também - ao menos para mim - que Trump está fora do controle. Há indícios de que o presidente americano está numa sequência muito perigosa e preocupante. Esta semana, por exemplo, Trump anunciou uma “Gold Card”, um upgrade da “Green Card” americana, só que para ricos. Pagando cinco milhões de dólares, estrangeiros poderão ganhar o direito à residência permanente nos Estados Unidos e outros privilégios. Trump está vendendo a cidadania americana. Eu assisti ao vídeo desse anúncio e ao contrário de Trump que certamente pensava na grandeza americana, eu vi desespero. Confesso que esse despero americano me preocupa.
A sequência no Salão Oval com Zelensky mostrou esse desespero que está no ar. Mostrou também que a primeira potência militar e econômica do mundo está sendo digirida por um homem descontrolado. E, pasmem! Seu vice-presidente é pior ainda.
Não bastasse o aquecimento global, o botão nuclear mais poderoso do mundo está nas mãos de um insano. Pobres de todos nós.
Obrigada por essa análise, você deixou esse episódio insano mais claro.