Enquanto o mundo multipolar não chega
Com a liderança americana contestada e um governo Trump isolacionista, o mundo vive momento de incerteza e as crises se multiplicam no planeta inteiro.
Não sei se vocês estão sentindo o mesmo que eu quando observam os acontecimentos no mundo, especialmente desde que Donald Trump voltou à Casa Branca. É inegável que a liderança americana nunca foi tão frágil. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e depois, durante a Guerra Fria, o mundo se acostumou a viver sob a tutela americana ou soviética. Era essa a ordem do mundo. Agora, parece que alguma coisa está faltando e não sabemos exatamente definir a época em que vivemos. Como entender esse processo?
Com a queda do Muro de Berlin e o fim da União Soviética, os americanos instalaram um longo período de hegemonia global com seu poder militar, diplomático, cultural (Hollywood, hip-pop) e econômico. Entretanto, a “Guerra ao Terror” levou a liderança americana a um desgaste quase irreversível. Foram duas guerras baseadas em mentiras e manipulações com a cumplicidade da mídia internacional, principalmente as grandes cooporações. A destruição da credibilidade americana foi quase completa.
Nesse cenário, alguns países como a China assumiram um novo papel no mundo. Graças a seu potencial ecnômico gigantesco e uma inteligência diplomática digna de Bruce Lee - “seja a água” -, a China conseguiu quebrar o domínio ocidental em continente como a África e até na América Latina onde desenvolveu relações privilegiadas com países como o Brasil em temas econômicos. A diplomacia chinesa é como a água; ela se adapta a todos os terrenos e responde às necessidades locais independentemente das ideologias. Os chineses não querem saber se os livros de história vão contar que foram moralmente superiores a seus concorrentes. De sua experiência milenar já determinaram que a história se lembra da versão dos vencedores.
O mundo já não é o mesmo. A Rússia de Putin também conseguiu seu espaço com um líder carismático que transmite um discurso franco, e sobretudo, ações impactantes. Precisamente o tipo de perfis que tendem a agradar um mundo desiludido e perdido. O mundo está em busca de liderança e os americanos já não podem oferecer isso.
Depois da chuva, a incerteza
Não sei se percebem que acabamos de sair de cinco anos realmente intensos e perigosos. Só para dar um exemplo, meu filho nasceu em 2019, um ano antes que o mundo entrasse em lockdown por causa da pandemia da Covid-19. Passei a chamar meu filho e outras crianças nascidas nesse período de “filhos da Covid”. Essas crianças passaram os primeiros dois anos de suas vidas vivendo em confinamento sem um processo normal de socialização. Se é verdade que os anos curaram essas “feridas”, seu impacto não foi menos traumático. Foi intenso e duro para os pais e para as crianças, embora nem sempre elas consigam expressar o que realmente sentem.
Tenho certeza de que esses anos de pandemia também foram extremamente difíceis para os adultos. É necessário que entendamos que tivemos uma experiência civilizacional sui generis. De certa forma, nós [adultos] também somos “filhos da pandemia”.
A Covid-19 foi só uma das crises que tivemos de enfrentar. E continuamos vivendo as consequências desse período conturbado. Foi também quando emergiram de uma forma muito radical os movimentos de extrema-direita. O mundo ocidental finalmente superou o trauma de Auschwitz e do Holocausto. É o fim da sacralização da Shoah. Com isso, os europeus assumiram sem complexo sua longa tradição fascista. É o refluxo do anti-iluminismo que agora tomou conta da Europa. Não há mais volta. Os diques morais construídos depois do genocídio dos judeus cederam. Até em Israel, um Estado fascista investe na aniquilação da Palestina e dos palestinos.
Geopolítica sem mediação
O que estou dizendo aqui pode ser considerado uma “tese”, no sentido de que estou avançando uma chave de leitura para o momento atual. Para mim, nós já passamos as maiores crises da nossa era que foram precisamente a Covid-19, a grande crise econômica de 2008 e a decadência da hegemonia cultural e diplomática dos Estados Unidos como consequência direta das guerras no Iraque e no Afeganistão. E atualmente estamos num período de transição.
Isso não significa que é um momento menos perigoso ou menos controverso. Pelo contrário. Justamente por estarmos saindo de um período onde a liderança global era claramente definida; com os Estados Unidos e seus aliados (OTAN) ditando os rumos do planeta, e estarmos num momento, por assim dizer, sem liderança global, a década de 2020 se torna altamente imprevisível.
Basta ver o que está acontecendo no planeta. A aproximação recente de Trump e Putin e o chute na bunda de Zelensky (literalmente, Trump não poupou o dirigente ucraniano e o chamou de “ditador sem eleição”) é um sinal claro. Os Estados Unidos estão dando as costas a seus aliados europeus enquanto Zelensky implora para “entrar na OTAN a qualquer custo”. Mas que OTAN, meu amigo?! Não percebe que isso já acabou? Talvez Zelensky seja a última pessoa a se dar conta que os Estados Unidos de Donald Trump não estão em guerra apenas com a China e os BRICS; eles também estão em guerra com a Europa ocidental.
Enquanto isso, a crise no Oriente Médio permanece. Tivemos até a proposta maluca de Trump de transformar Gaza numa espécie de Cuba de Fulgencio Batista: um casino internacional para satisfazer as perversidades americanas.
Um nova Guerra mundial africana?
E não para por aí. Posso entender que vocês, meus amigos brasileiros, não tenham ideia do que está acontecendo na África neste exato momento. Mas estamos vivendo uma das maiores crises geopolíticas, militares e humanitárias que o continente africano conheceu em décadas. O continente está prestes a explodir e o mundo nem observa. Entendam o que estou dizendo. A crise em Gaza acontece na indiferença do mundo, o mundo observa calado e impotente o genocídio e o futuricídio na Palestina. Mas eles observam. No caso da África, especialmente no caso do conflito entre Congo e Ruanda, o mundo nem observa o que tem acontecido.
Os dois países estão engajados há meses num conflito armado e o Congo corre um risco muito sério de balcanização. Várias províncias já caíram nas mãos dos rebeldes do M23 e eles avançam rumo à capital Kinshasa sem encontrar resistência. O governo do Congo procura aliados e encontrou um muito poderoso na África do Sul. Agora, a primeira economia africana está em guerra diplomática com Ruanda, outro país famoso por sua estabilidade econômica e seus grandes progressos sociais desde o fim do genocídio em 1994.
Não consigo imaginar os efeitos que teriam uma guerra direta envolvendo Ruanda e África do Sul. Um conflito generalizado na região não é uma fantasia de uma mente paranoica. Já aconteceu. De fato, o Congo foi o terreno de duas guerras continentais que envolveram vários blocos, a chamada Guerra Mundial Africana. Portanto, estamos lidando com um risco real.
Porém, o grande drama desse conflitos internacional é que ele está acontecendo sem que haja uma mediação minimamente digna da comunidade internacional. Os atores envolvidos não conseguem comunicar, Angola que assumiu a mediação entre Congo e Ruanda por um tempo, jogou a toalha. A Bélgica criticou e condenou a invasão ruandesa no Congo e em retaliação, Ruanda decidiu interromper a cooperação com o país europeu. A Inglaterra tentou uma mediação enviando seu ministro da relações internacionais, primeiro em Kigali e depois em Kinshasa, mas Inglaterra historicamente tem pouca influência no Congo.
Por outro lado, a França que já perdeu sua antiga infuência no continente africano, sobretudo, depois das operações militares no Mali, não é vista como um interlocutor confiável nem por Ruanda nem por Kinshasa. Enquanto isso, Donald Trump está em suas cruzadas contra o México, o Canadá e a China. E contra Zelensky, é claro.
Em outras palavras, nós temos um contexto global onde os Estados Unidos voluntariamente estão abdicando de seu papel de liderança (também porque ela foi muito desgastada) e onde as crises de multiplicam. Crises sem mediações e sem mediadores. Crises que vão se intensificar enquanto não houver uma nova ordem mundial capaz de dar as grandes diretrizes da geopolítica internacional. Esse mundo, como já afirmei aqui, precisa ser multipolar, mas enquanto ele não chega, o planeta está explodindo. Esta deve ser a transição mais explosiva da história da humanidade. Que o mundo novo chegue logo.