"Producionismo", a ideologia que impulsiona a extrema-direita mundial
O filósofo belga Michel Feher lançou um livro fundamental que destrincha a ideologia na base do crescimento da extrema-direita mundial.
Em 2024, Michel Feher lançou o livro “Produtores e Parasitas: o imaginário tão desejável da Frente Nacional”. Nele, o autor analisa a ideologia que está por trás da atração que a extrema-direita vem exercendo de maneira cada vez mais crescente na França e que se traduziu na vitória do partido de Marine Le Pen nas eleições legislativas e depois levou o presidente Emmanuel Macron a dissolver o Parlamento. O livro, no entanto, serve para entender o crescimento da extrema-direita não só na França, mas no mundo inteiro, principalmente nos Estados Unidos e no Brasil.
Neste texto, vou explicar passo a passo os fundamentos de tal ideologia conhecido nos Estados Unidos como “Producerism”. Um conceito que podemos traduzir como “Producionismo”. O subtítulo do livro já indica dois momentos importantes da análise que devemos fazer. Em primeiro lugar, está o imaginário. O que é esse imaginário? Em segundo lugar está o desejo que ele suscita na população e tentaremos explicar a partir de que mecanismo esse registro de captura do eleitorado se efetua.
O producionismo é o conceito que orienta esse imaginário. Eu fiz uma rápida busca em português para ver se o conceito tinha sido tratado no âmbito acadêmico brasileiro, pelo menos nas Ciências Humanas e a verdade é que não encontrei nada. Cuidado para não confundir “produtivismo” e “producionismo” que é o conceito que nos interessa aqui. E de fato, Feher tem razão em lamentar que o esse conceito não seja muito conhecido na França; e tampouco o é no Brasil pelo que notei já de imediato. O que é curioso porque ele está no coração do problema do crescimento das extremas-direitas hoje.
Etimologicamente, “producionismo” vem da palavra “Producer”; que é uma noção espelhada à de “consumerism”, ele mesmo derivado de consumidores, ok? Michel Feher explica que essa oposição entre “Producerism” e “Consumerism” implica uma certa representação da luta de classes. Mas não uma luta de classes de acordo com as configurações teóricas marxistas. Não estamos falando aqui da oposição estrutural entre Capital e Trabalho, do antagonismo que surge da relação salarial que traduz a exploração do trabalhador. Isso é o esquema básico do pensamento marxista. Não é disso que Michel Feher quer falar.
O problema central que Feher introduz é a interpretação de um antagonismo moral. Uma luta de classes moral. O enfrentamento entre dois tipos de caráteres. De um lado, temos os “produtores” que podem ser trabalhadores, assalariados ou autônomos, empreendedores. O que os caracteriza são suas virtudes. São pessoas que trabalham e produzem coisas úteis. Eles são adeptos do valor “trabalho”. Olha só, isso é muito interessante. Vou até pegar alguns exemplos no próprio cinema americano que refletem esse pensamento que está na base mesmo da formação dos Estados Unidos, principalmente na conquista do Oeste. Mas por enquanto vamos continuar com Michel Feher.
Na percepção desses “producers”, eles viveriam felizes se o produto de seu trabalho não fosse sistematicamente roubado pelos “Parasitas”. Esses que não trabalham, e quando trabalham, não fazem nada de útil. Pelo contrário, eles fazem um trabalho prejudicial para a sociedade (por exemplo, os jornalistas, os professores universitários, os políticos – de esquerda, é claro, etc.)


Michel Feher insiste num aspecto que é chave no pensamento do producionismo. Por um lado, está oposição moral entre “produtores” e “parasitas”; e por outro a ideia que há dois tipos de parasitas. Os parasitas de cima e os parasitas de baixo. Os de cima estão na circulação dos capitais financeiro e, sobretudo, cultural. No caso da circulação do capital cultura, estão os intelectuais, por exemplo. Os parasitas de baixo são os que beneficiam dos programas sociais. A ideia aqui é atacar a redistribuição das riquezas.
E finalmente, o terceiro elemento fundamental para entender o producionismo é que os produtores são pessoas daqui. Seus valores morais e sua ética de trabalho se encontram nas fundações da cultura nacional. Os parasitas são estrangeiros ou pelo menos pessoas que abominam a cultura dos “producers”. Aqui, nós temos uma crítica só que abarca ao mesmo tempo os estrangeiros (mexicanos, latinos, africanos, ou seja, os imigrantes) e a globalização; basicamente aquilo que eles identificam com George Soros e a Open Society. Essa figura pode ser também o judeu, um especulador financeiro globalista. Basicamente, uma ideologia global sem enraizamento. Juntando tudo isso o programa fica claro, não é?
Vale também lembrar que na categoria de “parasitas” estão incluídas as mulheres que são vistas como dependentes de seus maridos. Por isso que a misoginia é parte fundamental desse programa político. Embora hoje em dia as mulheres ocidentais estejam aderindo à extrema-direita também.
Sinceramente, acho que o livro de Michel Feher tocou em algo absolutamente fundamental para a compreensão do momento político que estamos vivendo. Seja aqui no Brasil, na Argentina, na Itália, na França, na Alemanha, na Inglaterra, etc. O problema é o mesmo. Aliás, o que foi a tentativa do golpe de Estado na Coreia do Sul senão precisamente mais um sintoma dessa ideologia.
Vejam só, aqueles que me conhecem sabem que sou um apaixonado dos mitos fundadores dos Estados Unidos e busco no cinema a maneira como eles são tratados. No cinema americano clássico podemos encontrar traços desse mito “producionista”. Veja o filme “O Homem Que Matou o Facínora” de John Ford. A figura interpretada pelo ator James Stewart representa justamente esse valor trabalho. Em várias cenas o vemos desempenhando tarefas domésticas, um trabalho braçal que é fundamental para o mito do empreendedorismo americano. Aqui, essa cena da cozinha é típica. James Stewart representa a virtude americana do trabalho.
Nos anos 1990, Clint Eastwood revisitou esse motivo numa cena cômica onde um ex-cowboy tenta alimentar seus porcos. Obviamente, ele é um fracasso completo se tratando desse tipo de empresa. Nesse filme, Eastwood representa o passado, um desajustado.
Na cena seguinte vemos o personagem de Clint Eastwood ir buscar sua arma e atirar num alvo distante. É nisso que ele é bom. Mas é um desajustado.
Aliás, em contraste, vemos o vilão do filme, um personagem interpretado pelo ator Gene Hackman e que constrói a própria casa literalmente com as próprias mãos. A casa fica torta, mas ali está ele construindo ela. Mesmo sendo um vilão, ele encarna também essa virtude primordial do mito fundador dos Estados Unidos: o trabalho. E é o trabalho braçal.
Exemplos como esses que citei podemos encontrar aos montes no cinema americano. É interessante que um intelectual se dedique realmente a esse tema. Inclusive pesquisando antes de escrever este texto, encontrei um manifesto, vejam só, intitulado “The Producerist Manifesto”, publicado em 2020 e que advoga que o producionismo é a salvação dos Estados Unidos. Clique aqui para ler.
Estou curioso para saber se já tinham ouvido falar dessa ideologia ou se sabem de um pesquisador brasileiro que escreveu sobre ele. Caso saibam, por favor, me indiquem.