Donald Trump rompe com o “pacto americano”
Ações do presidente americano estão redefinindo a natureza profunda dos Estados Unidos. Como os traços psicológicos de um indivíduo estão remodelando uma nação.

Basta observar com atenção as ações e as palavras de Donald Trump para se dar conta que algo está mudando nos Estados Unidos. Algo que não tem a ver apenas com o abandono dos princípios que norteiam as relações internacionais desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mas algo bem mais profundo.
Fim do mito da liberdade
Donald Trump está rompendo com os fundamentos políticos do Estado americano. Ou melhor dito, ele está rompendo com os motivos que levaram os pais fundadores a criarem o país. Trump vai na contramão da maioria das justificativas que situavam os Estados Unidos na posição de líder do mundo livre.
Obviamente, estou falando aqui na perspectiva norte-americana. Convenhamos que é difícil ir no Vietnã e explicar aos cidadãos daquele país que os Estados Unidos são o símbolo do mundo livre.
O que digo é que existe, para cada país, um discurso que serve internamente para reforçar a crença na necessidade da unidade do país. Esse discurso serve como uma projeção mental sobre o que faz um determinado país ser fundamentalmente o que ele é. São atos, ideias e discursos que servem para criar uma autoimagem ou o imaginário de uma nação. É isso que Trump está destruindo. Trump cria uma crise identitária nos Estados Unidos.
Alguns dos mitos que vem sendo derrubados é justamente esse que mencionei agora há pouco: o mito da liberdade. O país da liberdade que os americanos acreditavam ser já nem existe mais, nem para eles. A volta à Casa Branca de Trump vem coincidindo com uma série de perdas de liberdades que afetam várias comunidades minoritárias. Isso é ainda mais preocupante num país que tem um histórico longo de exterminar suas minorias – basta ver a história dos povos indígenas dos Estados Unidos e a dos negros também.
Acompanho de perto o blog de uma jornalista americana que faz um trabalho maravilhoso compartilhando e explicando diariamente as decisões de justiça – vitórias e derrotas – que afetam as pessoas Trans nos Estados Unidos. Ultimamente, eles contabilizaram mais derrotas que vitórias, porém, de vez em quando Erin (é o nome dela) tem motivos para comemorar. Vejam, por exemplo, o mapa que ela criou para a monitorar o risco que as pessoas Trans correm nos Estados Unidos.
Imigração: uma história contada e representada no cinema
O país da liberdade é agora também o país que executa deportações em massa de imigrantes ou de criminosos, mesmo quando a justiça termina que o governo não execute essas deportações.
Esse cenário é inédito na história americana. Temos um presidente que pode simplesmente se recusar a executar uma decisão de justiça, eventualmente da Suprema Corte, já que os tribunais não possuem capacidade de execução. A separação dos poderes, o famoso Checks and balances americano, prevê justamente um equilíbrio entre os poderes e entre o Estado Federal e os Estados membros da União.
Afinal, esse é o país onde, em 1957, o governo federal obrigou uma escola do Sul do país a aceitar alunos negros que ficaram conhecidos como os “Noves de Little Rock”. Em 2025, existe a possibilidade muito séria de um presidente se recusar a executar uma ordem da justiça que visaria precisamente a proteger os direitos fundamentais de uma minoria. Nesse sentido, sim, Donald Trump está rompendo com uma tradição americana. Ele está colocando em cheque a ideia fundamental da separação, balanço e equilíbrio dos poderes.
A maneira como os Estados Unidos estão rejeitando qualquer noção de pertencimento a uma comunidade mundial é igualmente um indicativo de uma transformação radical.
O país que foi criado graças à imigração agora combate com ódio qualquer coisa que não tenho um selo de americanidade que os ideólogos da extrema-direita são os únicos a saber definir.
Os Estados Unidos foram fundados com a imigração de vários povos do mundo, alguns foram levados para a América contra sua vontade. É o caso dos povos africanos, vítimas do tráfico negreiro e depois escravizados. Mas outros povos também construíram aquele país. Os alemães, por exemplo. Eu não sei se Trump é muito chegado em história, mas ele que tem ascendência alemã deveria saber que até mesmo seu povo sofreu discriminação quando chegou nos Estados Unidos. Principalmente aqueles mais pobres.

O cineasta Michael Cimino faz um relato/retrato brilhante desse período da história americana no filme “O Portal do Paraíso”. Alemães foram discriminados e massacrados.
Os irlandeses são outro povo que deu muito aos Estados Unidos. Também é uma história bem documentada e trazida às telas por diretores como Martin Scorsese e James Gray.
Os chineses, hoje inimigos jurados da América trumpista, também construíram esse país e muitos deles morreram durante a modernização dos Estados Unidos. A expansão territorial dos Estados Unidos, a revolução das ferrovias, tudo isso não seria possível sem o trabalho [forçado e escravo] de milhares de chineses. Ou seja, esse capitalismo de que os americanos tanto se gabam é também uma obra chinesa. E eles deixaram seu sangue nessa trilha histórica do capitalismo.
Esses são os fundamentos históricos que Donald Trump e sua administração estão destruindo. Não é à toa que esse governo dá uma importância particular ao apagamento histórico das minorias. Já são muitos os relatos de personalidades negras ou indígenas retiradas de sítios memoriais ou de documentos oficiais.
Na história americana, jamais a noção fundamental de acolhimento a qualquer povo ou indivíduo em busca de liberdade ou bem-estar foi subordinada à capacidade econômica do país em absorver essa “demanda”. Ao rejeitar a imigração sob a justificativa de que “o país precisa cuidar primeiro dos seus”; falando sem pudor, a ideia de que “o país precisa cuidar primeiro de seus pobres”, o país abandona a própria ideia da grandeza americana. É o imperador abdicando do trono. É uma confissão de fraqueza que não é costumeira dos políticos americanos. E talvez essa seja uma mensagem involuntariamente enviada ao mundo. Nós, do lado de fora, precisamos ter a capacidade de interpretar aquilo: Os Estados Unidos que tinham a vocação de acolher os povos do mundo inteiro - precisamente porque eles eram os Estados Unidos - já não existem. Este é um país ferido que não sustenta mais o peso do American Dream.
Os atos e as palavras
Trump também se aproveita de uma realidade americana. Infelizmente, ele conta com a ignorância do americano médio. Muitos americanos não se importam com o mundo e nem sabem onde fica o Brasil.
Além disso, é preciso prestar uma atenção especial à retórica empregada por Donald Trump. Ela tem sua importância e informa algo muito específico a respeito de sua psicologia.
Ao aplicar as famosas tarifas econômicas a muitos países, Donald Trump afirmou que se tratava da “Declaração de Independência econômica” dos Estados Unidos. Duas coisas merecem ser ditas sobre essa afirmação.
Em primeiro lugar, Trump precisa mostrar que seu governo é um governo de ruptura. E para isso, tem atos e tem palavras. Em geral, suas palavras serão excessivas.
O segundo ponto é que Donald Trump quer inscrever seu nome na Grande História Americana. Ele quer fazer parte da lista dos grandes presidentes americanos. Embora a definição de grandeza aqui tenha conotações diferentes dependendo de quem está avaliando. Essa lista pode incluir presidentes como George Washington, Abraham Lincoln, Monroe, Franklin D. Roosevelt, Kennedy, Nixon, Reagan, Clinton, George W. Bush ou Obama.
A obsessão de Trump é integrar essa lista. Isso ficou particularmente claro quando afirmou que quer enfrentar Barack Obama numa terceira corrida à Casa Branca. Esse é um traço psicológico fundamental de Trump. Ele se traiu com essa fala aparentemente inocente.
O ego de Trump se torna assim um elemento que não podemos descartar da análise se quisermos entender precisamente os planos do presidente americano.
É conhecido que Donald Trump sonha em ganhar o Prêmio Nobel da Paz – mais um motivo de inveja e admiração que ele secretamente tem por Obama. É por esse motivo que ele se precipitou nos atos e nas palavras sobre o problema da guerra na Ucrânia. Trump afirmou que terminaria com a guerra em apenas 24 horas. Ele quis precipitar o processo de paz sem avaliar bem o contexto e os protagonistas. Por isso, atropelou a Ucrânia e Zelensky.
Um registro discursivo ambivalente
O discurso de Trump apresenta duas dimensões que são usadas de modo paradoxal. Pelo menos, é assim que eu as percebo. Essas dimensões, embora, transmitam duas visões opostos e aparentemente incompatíveis, têm sua importância. Trump alterna entre a megalomania e a vitimização.
O discurso megalomaníaco é o típico discurso cristalizado no slogan “MAGA” – Make America Great Again. É um discurso que serve essencialmente para a mobilização das massas. Ele transmite a ideia de grandeza. Ou, na visão de Trump e de seus eleitores, a busca por essa grandeza. É um horizonte. Uma visão de futuro. Nesse sentido, o discurso trumpista oferece uma perspectiva de longo prazo, uma espécie de esperança à qual as massas sempre vão se agarrar. Funciona.
A vitimização, por outro lado, aparece especialmente no discurso servido na apresentação das tarifas sobre o comércio internacional. Os Estados Unidos são vítimas do mundo. Eles são vítimas até de seus aliados. Um gigante explorado. Essa perspectiva também mobiliza as massas. Para ser mais preciso, esse discurso mobiliza um sentimento. Ele mobiliza o ressentimento dos mais radicais e direciona o ódio dos eleitores trumpistas, sobretudo, os mais pobres.
A vitimização é típica da extrema direita. Estamos vendo exatamente o mesmo mecanismo com Bolsonaro no Brasil e com Marine Le Pen na França.
Esse duplo registro do discurso de Donald Trump é uma novidade no cenário político americano. Essa ambivalência soa como uma contradição aos ouvidos dos observadores mais atentos e serve a um propósito muito preciso. É por essa razão que a capacidade de mobilização de Donald Trump é importante e, aparentemente, sem prazo de validade.
P.S. : Se você já leu alguns textos deste blog, me diga nos comentários qual deles você mais gostou.
Serge, que análise excelente. Não vou negar que a pauta Trump sempre me causa calafrios. Observo que o plano de Trump é criar uma nova depressão econômica e desvalorizar o dólar (para tornar os produtos made in USA mais competitivos no cenário mundial) . Só que todas as economias vão pro saco. Daí surgem os dulces e fuhrer mundo afora. A guerra acontece e os EUA voltam para os tempos fautos com a ajuda da indústria bélica. Novos desdobramentos para eventos conhecidos...